"A casa está construída na duna e separada das outras casas do sítio. Esse isolamento cria nela uma unidade, um mundo. O rumor das ondas, o perfume do sal, o vidrado da luz marinha, o ar varrido de brisas e vento, a cal do muro, os nevoeiros imóveis, o arfar ressoante do mar estabelecem em seu redor grandes espaços vazios, tumultuosos e limpos onde tudo se abre e vibra.
A casa é construída de pedra e cal e a sua frente está virada para o mar.
No andar de cima da fachada há três janelas e uma varanda com grades de madeira. No andar de baixo há três janelas e uma porta. Essa porta, as janelas e as grades da varanda estão pintadas de verde. No chão, ao longo da parede, corre um passeio de pedra que separa a casa das areias da duna.
Para além das dunas a praia estende-se a todo o comprimento da costa e só o limite do olhar a limita. E, de norte a sul, ao longo das areias, correm três linhas escuras e grossas de algas, búzios e conchas, misturados com ouriços, pedaços de cortiça e pedaços de madeira que são restos de bóias e de barcos. (…)
Há na casa algo de rude e elementar que nenhuma riqueza mundana pode corromper, e, apesar do seu halo de solidão e do seu isolamento na duna, a casa não é margem mas antes convergência, encontro, centro.
Quem nas janelas do corredor olha para fora e vê o muro de granito, as árvores na distância e os telhados a oeste, aquilo que vê aparece-lhe como um lugar qualquer da terra, como um acidente, um lugar ocasional entre o acaso das coisas.
Mas quem do quarto central avança para a varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra seu rosto e sua evidência.
Pelo gesto de dobrar o pescoço e de sacudir as crinas, as quatro fileiras de ondas, correndo para a praia, lembram fileiras brancas de cavalos que no contínuo avançar contam e medem o seu arfar interior de tempestade. O tombar da rebentação povoa o espaço de exultação e clamor. No subir e descer da vaga, o universo ordena seu tumulto e seu sorriso e, ao longo das areias luzídias, maresias e brumas sobem como um incenso de celebração.
E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado."


Sophia de Mello Breyner Andresen. Histórias da Terra e do Mar. Texto Editora , 1990. 4ª ed.


 

Pedra do Homem, 2007



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